quarta-feira, março 29, 2006

O Caso do Descaso

As mais inocentes sensações de bem-estar têm um quê de capeta. Esta é a conclusão a que cheguei após muito refletir no andamento de certos fatos do passado e do presente. Reconheço que é praticamente inútil escrever sobre assuntos de índole geral, que via de regra tornam-se pouco atrativos - e acaso estéreis. Mais ainda: analisar as pessoas e seus comportamentos causa-me tal enfado que acabo por crer que sou apenas um entre muitos daqueles que desejam transpor todos os obstáculos deste mundo e do outro (já dizia Machado). Contudo, o leitor há de desculpar-me pela falta de originalidade; a repetição é uma arte, e poucos sabem repetir com elegância.

Acalmemos a curiosidade, e digamos logo a que vem este texto, e do quê ou de quem é a culpa - ou se é dos dois. Resolvo pela terceira hipótese; a primeira, não sendo mais que uma palavra, não completa o sentido nem o motivo, e deixaria-me devedor, uma vez que quem deve parte permanece insolvente. Tal é o vocábulo que me refiro: farisaísmo. A outra concausa, minha bisavó - e que Deus a tenha.

Às bisavós costuma-se chamá-las santas; a minha não sei se o foi, apenas que era minha bisavó e que tinha o dom de definir as coisas. Alguns diriam mesmo que era dessas que possuem um princípio ontológico inato: certo ou errado, sem nenhum méson - e que bendita fúria lhe trazia a confusão destes dois termos! Chego a temer que haja falhado seu requiescant in pace, pois ainda hoje deve se revirar no túmulo ao ver ou ouvir (ou qualquer verbo de sentido espiritual que desconheça) certos indivíduos da fauna intelectual que se apresentam como baluartes do politicamente correto.

Ora, vejam vocês: tais pessoas padecem antes de uma doença espiritual do que física ou psicológica; são fariseus modernos, como dizia minha biza, na melhor (ou pior, quem sabe) acepção bíblica da palavra. Seu diagnóstico é simples: o descaso com o conteúdo e a adoração da forma, de maneira que os politicamente corretos poderiam receber a mesma censura do Mestre: “sepulcros caiados” - alvos e límpidos por fora, mas cheios de vermes e odores fétidos por dentro.

Ser politicamente correto não é ter respeito pelo próximo, mas é esquecer-se dele. Devemos dizer que um gay é uma abominação não apenas para cuspir-lhe na face uma verdade nua e crua, mas para que ele enxergue o que é correto (verdadeiramente correto) e mude. É por isso que fico indignado (talvez seja algo hereditário) quando certos sujeitos dizem “cada um na sua e eu na minha”, porque essa é a maior fraude sentimentalóide que existe. Quem se explica dessa forma não quer a liberdade do próximo, mas que o próximo vá às favas.

O xis da questão, no entanto, é que este não é um caso de ignorância ou de desconhecimento da verdade. As pessoas sabem o que é a verdade, mas a guardam em uma caixa de sapatos debaixo da cama, que só é aberta quando ela mesma parece afetada. Falar que um gay “é uma pessoa como outra qualquer” é fácil, mas se seu filho se tornar “uma pessoa como outra qualquer”, bem... uma calibre doze não será o bastante. É certo que o descaso tem, por vezes, sua gota de prazer. Ser indiferente proporciona algum distanciamento da controvérsia, ao mesmo tempo em que justifica a não-condenação. Mas isso simplesmente é terrível, pois este “sentir-se bem” implica em que o outro continue como está: sozinho, perdido e no caminho errado. Sim, caros leitores, as mais inocentes sensações de bem-estar têm um quê de capeta.

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