quarta-feira, março 29, 2006

O Caso do Descaso

As mais inocentes sensações de bem-estar têm um quê de capeta. Esta é a conclusão a que cheguei após muito refletir no andamento de certos fatos do passado e do presente. Reconheço que é praticamente inútil escrever sobre assuntos de índole geral, que via de regra tornam-se pouco atrativos - e acaso estéreis. Mais ainda: analisar as pessoas e seus comportamentos causa-me tal enfado que acabo por crer que sou apenas um entre muitos daqueles que desejam transpor todos os obstáculos deste mundo e do outro (já dizia Machado). Contudo, o leitor há de desculpar-me pela falta de originalidade; a repetição é uma arte, e poucos sabem repetir com elegância.

Acalmemos a curiosidade, e digamos logo a que vem este texto, e do quê ou de quem é a culpa - ou se é dos dois. Resolvo pela terceira hipótese; a primeira, não sendo mais que uma palavra, não completa o sentido nem o motivo, e deixaria-me devedor, uma vez que quem deve parte permanece insolvente. Tal é o vocábulo que me refiro: farisaísmo. A outra concausa, minha bisavó - e que Deus a tenha.

Às bisavós costuma-se chamá-las santas; a minha não sei se o foi, apenas que era minha bisavó e que tinha o dom de definir as coisas. Alguns diriam mesmo que era dessas que possuem um princípio ontológico inato: certo ou errado, sem nenhum méson - e que bendita fúria lhe trazia a confusão destes dois termos! Chego a temer que haja falhado seu requiescant in pace, pois ainda hoje deve se revirar no túmulo ao ver ou ouvir (ou qualquer verbo de sentido espiritual que desconheça) certos indivíduos da fauna intelectual que se apresentam como baluartes do politicamente correto.

Ora, vejam vocês: tais pessoas padecem antes de uma doença espiritual do que física ou psicológica; são fariseus modernos, como dizia minha biza, na melhor (ou pior, quem sabe) acepção bíblica da palavra. Seu diagnóstico é simples: o descaso com o conteúdo e a adoração da forma, de maneira que os politicamente corretos poderiam receber a mesma censura do Mestre: “sepulcros caiados” - alvos e límpidos por fora, mas cheios de vermes e odores fétidos por dentro.

Ser politicamente correto não é ter respeito pelo próximo, mas é esquecer-se dele. Devemos dizer que um gay é uma abominação não apenas para cuspir-lhe na face uma verdade nua e crua, mas para que ele enxergue o que é correto (verdadeiramente correto) e mude. É por isso que fico indignado (talvez seja algo hereditário) quando certos sujeitos dizem “cada um na sua e eu na minha”, porque essa é a maior fraude sentimentalóide que existe. Quem se explica dessa forma não quer a liberdade do próximo, mas que o próximo vá às favas.

O xis da questão, no entanto, é que este não é um caso de ignorância ou de desconhecimento da verdade. As pessoas sabem o que é a verdade, mas a guardam em uma caixa de sapatos debaixo da cama, que só é aberta quando ela mesma parece afetada. Falar que um gay “é uma pessoa como outra qualquer” é fácil, mas se seu filho se tornar “uma pessoa como outra qualquer”, bem... uma calibre doze não será o bastante. É certo que o descaso tem, por vezes, sua gota de prazer. Ser indiferente proporciona algum distanciamento da controvérsia, ao mesmo tempo em que justifica a não-condenação. Mas isso simplesmente é terrível, pois este “sentir-se bem” implica em que o outro continue como está: sozinho, perdido e no caminho errado. Sim, caros leitores, as mais inocentes sensações de bem-estar têm um quê de capeta.

sexta-feira, março 24, 2006

Galileu e Copérnico: queimados na fogueira?

Sinopse de um artigo publicado por D. Estevão Bittencourt em 1999 sobre algumas lendas que se contam acerca da História da Igreja.

Nicolau Copérnico nasceu aos 14/02/1473 em Torun (Polônia) e faleceu em Frauenburg (Polônia) aos 24/05/1543 de morte natural, em santa paz com a Igreja. Estudou Astronomia e Matemática Universidade de Cracóvia e, por três anos, Direito Canônico em Bolonha (Itália). Em 1500 lecionou Astronomia na Universidade de Sapientia de Roma. Voltou para a Polônia em 1505 e foi nomeado Cônego da Catedral de Frauenburg, onde continuou seus estudos. Com efeito: Copérnico, usando de poucos e modestos instrumentos, fabricou uma lente, que ele colocou sobre uma torre perto da catedral e pôde, entre outras coisas, observar o fenômeno da precessão dos equinócios.

Em 1530 Copérnico começou a escrever a sua famosa obra De revolutionibus orbium caelestium libri sex (Seis Livros sobre a Revolução dos Corpos Celestes). Teve notícia dessa iniciativa o Cardeal Nicolau Shönberg em 1536, o qual aprovou o empreendimento. Antes de morrer Copérnico dedicou tal obra ao Papa Paulo III, cultor da ciência astronômica, que aceitou tranqüilamente a dedicatória, sem lhe opor objeção. Segundo Copérnico, o sol ocupa o centro do sistema planetário, em torno dele giram os planetas em órbitas circulares. Tal concepção encontrou exígua acolhida na época, de tal modo estava arraigada a teoria geocêntrica que não somente a bíblia, mas também a observação astronômica dos séculos anteriores pareciam ensinar. Por conseguinte Nicolau Copérnico não foi incomodado por causa de suas idéias e morreu em paz com a Igreja no ano de 1543.

Galileu Galilei soube de um aparelho inventado por um holandês que permitia ver objetos afastados com nitidez (telescópio). A partir dessas informações construiu um telescópio com melhores características e com ele fez muitas descobertas. Essas descobertas foram publicadas em 1610 e trouxeram uma grande popularidade a Galileu. Entre os que o cumprimentaram e admiravam o seu trabalho, estavam o astrônomo Kepler e o matemático jesuíta Clavius. Por outro lado, os aristotélicos reagiram violentamente, inclusive duvidando da competência de Galileu como pesquisador.

Em 1611 Galileu esteve em Roma e foi muito homenageado por cientistas e nobres. Foi recebido como membro da Academia dei Licei. Os Jesuítas (muitos dos quais eram professores e astrônomos) dedicaram-lhe uma festa acadêmica no Colégio Romano, com a presença de duques, condes , muitos Prelados e alguns Cardeais. O próprio Papa Paulo V concedeu-lhe audiência.

Galileu defendeu irredutivelmente a teoria do heliocentrismo até o fim de sua vida . O fato é que Galileu não dispunha de provas concretas ou convincentes. Aprova que insistia, do fluxo e refluxo das marés, estava errada. As marés são causadas pela força gravitacional da Lua e do Sol. Ademais, se fossem causadas pela rotação gravitacional da Terra, deveria haver só uma maré por dia, e não duas. Acenou, como prova, para os ventos alísios, mas não pôde quantificar o fenômeno. E aí estava certo, pois o desvio para o Oeste dos ventos que sopram para o Equador em ambos os hemisférios é causado pela rotação da Terra.

Em conclusão: não tinha provas científicas. Por isso , em vez de usar de argumentos físicos, Galileu recorreu a argumentos bíblicos citando trechos que, tomados literalmente, defendessem a teoria do Heliocentrismo (como por exemplo o Salmo 96, 9: “Diante d’Ele estremece a Terra inteira.”

Essa insistência de Galileu em usar de argumentos bíblicos, aliado ao seu temperamento polêmico (diz a Enciclopédia Mirador Internacional que Galileu era “de um estilo de grande veracidade, freqüentemente irônico e mordaz...”) fizeram com que entrasse em conflito com a Igreja, resultando em dois processos inquisitórios que acabaram sem grandes conseqüências.

Em 1637 fica cego. Em 1638 publica o livro “Diálogo das duas novas ciências”, que são a Resistência dos Materiais e a Mecânica Racional, básicas para vários ramos da engenharia. Morre em 08/01/1642, assistido por um bom sacerdote, como bom católico.

A Inquisição e os Cientistas

Seria para desejar que os críticos contemporâneos conhecessem melhor os temas que eles criticam, a fim de não cometerem injustiças em nome da justiça.

Nicolau Copérnico, como já foi dito, não foi incomodado por suas idéias e morreu em paz com a Igreja em 1543.

Galileu Galilei, por sua insistência em provar a teoria do heliocentrismo através de argumentos exegéticos, sofreu dois processos inquisitórios (um em 1616 e o outro em 1633). O primeiro processo foi aberto devido ao fato de que Galileu queria forçar uma decisão urgente da Sagrada Congregação do Índex (Inquisição Romana) para que certas passagens da Escritura fossem interpretadas de modo diferente da usual havia séculos (de modo que a teoria do heliocentrismo fosse favorecida).

Foi advertido para que deixasse o lado teológico da questão e usasse apenas argumentos das ciências naturais para justificar o sistema heliocêntrico. O Cardeal Berlamino recomendou prudência a Galileu, dizendo que não apresentasse o sistema como verdade definitiva (o que não existe na ciência; nesta nada é definitivo), e que não forçasse reinterpretações da Sagrada Escritura enquanto não houvessem provas demonstrativas. Porém Galileu continua, com seu estilo polêmico, a discutir.

Em 24/01/1616, em sessão do Santo Ofício, os consultores apresentam o seu parecer sobre a controvérsia: a teoria do sol fixo é considerada absurda do ponto de vista filosófico e formalmente herética, por estar em contradição com várias passagens da Sagrada Escritura, de acordo com o sentido literal e a interpretação corrente dos Padres da Igreja. A teoria da Rotação da Terra e Translação em torno do Sol também é considerada falsa e absurda do ponto de vista filosófico, e errônea na fé.

No dia seguinte, há uma reunião dos cardeais, sob a presidência do Papa Paulo V, para avaliar o parecer dos consultores e pronunciar uma decisão. Foram tomadas duas medidas:

1º- O Cardeal Belarmino é encarregado de, em audiência particular, convencer Galileu a abandonar a teoria copernicana. Galileu nega-se a tal. Recebe, então, de Belarmino, diante de um comissário da Inquisição e de outras pessoas, o preceito formal de não sustentar, ensinar ou defender tal teoria. Galileu promete obediência. Não houve processo formal, nem sentença, abjuração ou penitência.

2º- Por decreto da Sagrada Congregação do Índex, foram proibidos os livros de Copérnico, de Foscarini e, de modo geral, dos que defendiam o heliocentrismo. Nenhuma referência nem ao nome nem à obra de Galileu.

Observa-se que a obra de Copérnico, já com 80 anos, até então havia sido deixada pela Igreja Católica à livre discussão, e havia eclesiásticos que a defendiam. E nela baseou-se a reforma do calendário em 1582. O que provocou, depois de tanto tempo, sua proibição foi a atitude de Galileu, querendo impor como certa , verdadeira, uma teoria para a qual não tinha provas objetivas. Lançando mão de razões exegéticas e insistindo em uma reinterpretação da Bíblia, Galileu acabou forçando uma decisão imatura e lamentável da Sagrada Congregação do Índex.

O segundo processo foi resultado de uma desobediência disciplinar. Depois da aparição de três cometas em novembro de 1618, Galileu escreve um livro: “Diálogo Sobre os Dois Sistemas Máximos do Mundo: O Ptolomaico e o Copernicano”. Galileu comunicara ao Papa Urbano VIII que pretendia escrever esse livro. O Papa o apoiara , aconselhando-o, porém, a não entrar em conflito com o Santo Ofício e a tratar o sistema de Copérnico como hipótese.

Galileu vai então a Roma obter o necessário “Imprimatur”. O encarregado, o Pe. Riccardi (seu amigo) concluiu que eram necessárias algumas modificações: mudar o título, que era de “Diálogo Sobre as Marés”, porque destacava muito o único argumento (e errado) de Galileu para provar o sistema copernicano, alterar algumas passagens e alterar o prefácio, de modo a não apresentar o sistema heliocêntrico como verdade segura, mas sim como hipótese.

Em suma: Galileu, que iria imprimir o livro em Florença, argumentou com a peste, que dificultava a comunicação enter as duas cidades. O Pe. Riccardi concordou com o exame da obra em Florença, bastando enviar à Roma o título e o Prefácio.

Em Florença, Galileu consegue que o revisor seja outro amigo seu, Stefani, que foi induzido a pensa que a obra já havia sido aprovada em Roma. Stefani concedeu autorização. O título e o Prefácio foram enviados a Roma e o livro foi publicado em 1631.

Quando Riccardi recebeu um exemplar da obra completa, viu com surpresa que, antes da aprovação florentina, figurava a sua. E sem nenhuma correção no corpo do livro: o sistema copernicano era apresentado em toda a obra, exceto no prefácio, como verdade incontroversa. Urbano VIII, pressionado pelos inimigos de Galileu, e considerando a desobediência formal de 1616, passou o assunto à Inquisição. A obra foi examinada e censurada em oito pontos, esclarecendo nas conclusões que todos eles podiam ser corrigidos. Mas, acrescentava, a desobediência era um agravante.

Galileu, chamado a Roma para julgamento, depois de vários adiamentos, lá chega em 12/02/1633. Hospedou-se no palácio do embaixador de Florença inicialmente, e depois passou a residir no edifício da Inquisição, em aposentos do fiscal da Inquisição, “cômodos e abertos” (nada de aprisionamentos em masmorras, “a pão e água”, como diz uma das lendas). Foi submetido a quatro interrogatórios. No último interrogatório (em 21/06/1633), quando lhe perguntaram se defendia o sistema copernicano, respondeu negativamente.

No dia seguinte, em Decreto do Santo Ofício, é publicada a sentença na qual consta: “...é absolvido da suspeição de heresia, desde que abjure, maldiga e deteste ditos erros e heresias...”. Galileu ouviu de pé e com a cabeça descoberta a leitura de sua condenação (três anos de prisão; recitação semanal dos sete salmos penitenciais, por três anos). Depois, de joelhos e com uma mão sobre os Evangelhos, assinou um ato de abjuração, no qual declarava que era “justamente suspeito de heresia”.

Nesta ocasião, Galileu teria exclamado, batendo o pé no chão: “E pure si muove” (e todavia se move). Lenda inverossímil, dadas as circunstâncias (estava de joelhos). É uma fantasia que apareceu pela primeira vez em 1757 (mais de um século depois), em obra de Baretti. Além das penas pessoais, também foi proibido o livro de Galileu.

No dia seguinte, a sentença é comutada pelo Papa. Galileu vai viver no palácio do Embaixador de Florença depois passa para a casa do Arcebispo Piccolomini, seu discípulo e admirador, em uma espécie de prisão domiciliar. Foi-lhe permitido voltar a Florença em 10/12/1633, cinco meses e oito dias depois da condenação.

Embora reconheçamos que o segundo processo teve, como gravame, a vaidade e a insinceridade de Galileu, devemos todavia lamentar profundamente a primeira condenação de 1616 como inquietante erro judicial, e como abuso de poder diretamente catastrófico em suas conseqüências.

À guisa de complemento, convém notar que, aos 31/10/1992, o Santo Padre João Paulo II reconheceu o erro dos teólogos do século XVII. A condenação de Galileu por parte do Santo Ofício não afeta a infabilidade do magistério da Igreja, pois esta só se exerce em matéria de fé e Moral; o assunto abordado no debate entre Galileu e os teólogos era de ciências naturais... ciências que, segundo a mentalidade do século XVII, deveriam aprender da Sagrada Escritura a concepção geocêntrica.

Bibliografia: Pergunte e Responderemos Ano XL – Novembro 1999, Nº 450

terça-feira, março 21, 2006

A Máquina do Mundo

Escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), editado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”.

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter suado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

covidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo".

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o set terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima - esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade que,
já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

segunda-feira, março 20, 2006

Dor [A Grief Observed] – C. S. Lewis

“Nunca ninguém me tinha dito que a dor se assemelhava tanto ao medo. Não que esteja assustado, mas a sensação é de estar assustado. A mesma ânsia no estômago, o mesmo desassossego, os bocejos. Não paro de engolir em seco.

"Noutras alturas é mais como estar ligeiramente ébrio ou ter sofrido uma pancada na cabeça. Há uma espécie de pano invisível entre mim e o mundo. Sinto dificuldade em compreender o que me dizem. Ou talvez dificuldade em desejar compreender. É tudo tão desinteressante. E, no entanto, quero ter pessoas à minha volta. Temo os momentos em que a casa fica vazia. Se ao menos falassem uns com os outros e não comigo.Há momentos em que, ah!, tão inesperadamente!, algo dentro de mim tenta convencer-me de que, afinal, não sinto assim tanto, não tanto como isso. O amor não é tudo na vida de um homem. Eu era feliz antes de ter conhecido H. Sou uma dessas pessoas que têm “muito a que se agarrar”. Estas coisas acabam por passar. Vá lá, não pode ser assim tão mal. Envergonha-nos darmos ouvidos a esta voz mas, por um momento, parece estar a sair-se bem. E depois é a súbita apunhalada do ferro em brasa da memória e todo esse “bom senso” se desfaz em nada como uma formiga na boca de um forno”.

domingo, março 19, 2006


Saudosa memória, caro Padawan.

sexta-feira, março 17, 2006

Sonho de Inverno I

Homem de bigode preto e mulher aterrorizada, ambos na sala de um apartamento pequeno em uma tarde de décadas atrás. A mulher suspira; da curva de seus olhos salta uma gota d’água, e depois outra, e outra, até que se desmancha em prantos. Sua boca se abre; parece que irá soluçar. Mas não, ela pronuncia uma palavra, apenas uma. A cabeça salta para trás, pipocando no encosto da cadeira, ao mesmo tempo em que urra como um porco em agonia. A mão do homem abaixa, veias saltadas e leve tilintar. Ela se levanta, faz menção de sair, e de fato sai pela porta de entrada. O homem a segue; ela se dirige com certa dificuldade às escadas; não, é claro, por causa de seu rosto: não se anda com as faces. Havia algo mais. Ela abraça sua própria cintura, enquanto se dirige novamente para o homem, e pronuncia mais uma palavra, esta dita com certa ironia, ao que parece. Seu ombro despenca para o vazio, arrastando consigo o resto de seu corpo. Ela rola as escadas, e cai desacordada.

quinta-feira, março 16, 2006

Cinzas da Veleidade

"Para que vendo, não vejam; e ouvindo, não ouçam."

Rômulo Tenório caminhava havia alguns minutos, o arco da vista dividido entre as pedras do mosaico português e as pontas de seus sapatos. O ritmo de seus passos harmonizava com os de seu próprio pulso, e, como o sentimento que àquele instante o dominava era de uma estranha e intensa indiferença – algo como se houvesse arrancado sua alma e alocado-a em todas as outras coisas exteriores – seu andar era leve, quase um vagar sem destino.

Era a avenida Eduardo Ponz, que marcava o principal sulco de asfalto no meio daquele município. Rômulo o amava, e com ele tudo o mais que, como depois veio a perceber, enquadra-se na lista de palavras com as quais se chega a dizer que uma cidade não é apenas uma cidade, mas uma cidade grande. Sempre acreditara no poder que tais características exercem sobre a mente de um indivíduo, e ele mesmo era o milagre ambulante que confirmava esta fé. Tinha o dedo na chaga, pode-se afirmar. Agora como sempre, aquele era o momento em que esquecia de seu próprio nome, em que parava de respirar para deixar-se invadir pela multidão nas calçadas, tornando-se um minúsculo ponto de grafite no meio de toda a terrível máquina cósmica. Dobrava o seu ego, se é que um dia alguém entenderá como isto é importante na vida de um homem.

Uma pedra maldita fê-lo voltar a si mesmo. Um parco gomo de concreto - e um rosto também. Ao receber o impacto dolorido, levantara os olhos ao nível das cabeças que por ele passavam, e pousara-os na face circunspecta de um jovem - um relance fugidio, certamente, e que bastou, contudo, para novo contágio de introspecção. O resto foi por conta da imaginação, esta perene fabricante de sinapses tresloucadas: a dor lembrou-lhe a Dor - a Dor, a angústia.

O rapaz, notadamente bem alinhado, trouxe-lhe à memória a imagem daquele estudante das leis, com quem cursara a faculdade havia nove anos. Assíduo freqüentador de boates, discípulo intransigente de Baco, embaixador de todas as causas universitárias - era de porte físico pujante, inversamente proporcional ao seu glossário, um tanto diminuto. A trivialidade, para ele, era tão natural como seu fígado: existia, somente, como se não devesse ser de outro modo. Nada lhe restava, apenas a meia-virtude de receptar o ambiente, de traduzir cada inflexão de voz e cada contração da face em sinais evidentes do pensamento alheio, para não maculá-lo com seus próprios defeitos. As sobras eram cinzas da veleidade, aguardando o derradeiro sopro para completar o aniquilamento da potência.

Tais propriedades causavam asco em Rômulo. A percepção, pela obra genérica, nunca fora seu maior dote. E, todavia, o menor contato com o colega bastava para produzir-lhe a sensação de encontrar-se perante um homem encardido, um espírito frouxo – a pedra de toque dos que gastaram o olhar na contínua inspeção de todas as coisas, incautos, antes e depois, das conseqüências. Estas não são tristes; ao contrário, ouve-se risadas. Mas risadas que saem escarradas do peito, revelando a insurreição da própria consciência, tantas vezes afogada na consecução do ato, e que agora se vinga, escarnecedora, do infrator.

Um dia, porém, Rômulo o alertara. “Neste mundo, há efeitos de certas ações que nem mesmo a redenção pode apagar. O inocente assim perdura apenas até o momento em que responde a outros chamados; após, a chaga aberta e supurada acaso fecha-se - mas a marca continua, e a realidade segue a própria sina, imitigável. O inferno, portanto, é a inequívoca certeza dos fatos consumados, a que se soma a dúvida sobre a atual constituição do espírito, quiçá acerca da futura. O tormento se inicia, assim, já nesta vida - ela mesma, o pêndulo que vacila entre o desejo e a verdade.”

Rômulo estacou. Ao lembrar-se do sorriso cético com que o companheiro lhe respondera, atingiu-lhe o anseio, não pequeno, de gritar aos quatro ventos todos os impropérios que aprendera até então. Conteve-se, no entanto, raciocinando na imutabilidade inexpugnável de certas fortalezas. “O sol, enfim, há de ser para sempre o mesmo carro de Apolo” - e, abrindo bem os olhos, esperou até que a loja da esquina viesse em seu socorro com um banho de materialidade.

Mas as sombras já se alargavam, e a avenida chegara ao fim, o que significava estar na hora de regressar a seu apartamento, e ele, contrariado pela fugacidade do passeio, virou-se, limpou os óculos na camisa, e palmilhou novamente a calçada, absorto nos dizeres do poeta: “Poema nenhum, nunca mais, /Será um acontecimento: /Escrevemos cada vez mais /Para um mundo cada vez menos, /Para esse público dos ermos /Composto apenas de nós mesmos /Uns joões batistas a pregar /Para as dobras de suas túnicas /Seu deserto particular, /Ou cães latindo, noite e dia, /Dentro de uma casa vazia.”[1]

[1] “Casa Vazia”, Alberto da Cunha Melo

quarta-feira, março 15, 2006

O Ósculo de Orfeu

Salve, o poeta da Trácia!
Viva, o indecente ceifeiro!
Quem te guiou na trapaça?
Quem te falou ao ouvido

Que o homem é vaso e água?
Que a água é o sopro divino?
Que a morte é a trinca no vaso?
Que é certo o ocaso, e certo o destino?

Agiste de má-fé, quero crer.
Sorveste o ópio do Incerto,
está claro. Qual direito tens

De abalar as luzes do inferno
desta barca sempre errante, do
féretro inteligível e concreto
que jaz no humano cemitério?

Repousaste teus lábios no rosto
esquivo. Mas erraste, caro amigo -
que a alma agora viu-se rota,
entrou em desespero e meteu-se um crivo.

terça-feira, março 14, 2006

Saudações Preliminares

A todos os que o infortúnio de me conhecer alcançou, dedico as observações que serão divulgadas por meio deste blog. Não tenho a pretensão de formar um público cativo - advertência necessária, posto que há leitores cuja exigência talvez não aprove a regularidade de minhas publicações. Espero, tão-somente, ter um lugar onde aquelas sinapses desvairadas possam descansar em paz.

E minha primeira declaração, como maestro dessa orquestra, é que não tenho papas na língua. Definitivamente não. Meu compromisso, deixo desde já registrado, está para com a verdade. Em outras palavras: vou meter o pé na jaca. É só.

O Homem no Espelho

“Todos aqueles que têm tido a infelicidade de lidar com criaturas completamente doidas ou que estão no estágio inicial da doença mental sabem que uma das suas características mais sinistras é a espantosa clareza nos pormenores: as coisas ligam-se umas às outras em um plano mais intrincado que um labirinto. Se você discutir com um doido, muito provavelmente levará a pior, pois a mente do alienado, em muitos sentidos, move-se mais rapidamente porque não se detém em coisas que preocupam apenas quem tem bom raciocínio. O louco não se preocupa com o que diz respeito ao temperamento, à caridade ou à certeza cega da experiência. A perda de certas afecções sãs tornou-o mais lógico. A maneira como se encara, vulgarmente, a loucura é errônea: o louco não é o homem que perdeu a razão, mas o homem que perdeu tudo, menos a razão.”

Falar de autores e livros é sempre um exercício mais ou menos ingrato. A relação escritor-leitor fica invariavelmente restrita a um início onde se apresenta o nome do cidadão sobre o qual se irá versar, em que lugar nasceu, se teve mulher, filhos, se fez algo de importante além escrever um livro, etc. Tudo isso é por certo enfadonho e, se pudesse, no caso deste texto simplesmente começaria por dizer que Chesterton é Chesterton, e o resto é o resto.

Acredito que há uma classificação pacífica segundo a qual todas as obras artísticas encontram-se divididas em duas espécies: as que serão lembradas até o fim dos séculos e as que serão deixadas no lixo do esquecimento. Ortodoxia é uma dessas criações literárias que veio para ficar. Uma verdadeira elegia ao bom gosto, cujo autor chama-se Gilbert Keith Chesterton, nascido em um pequeno distrito central de Londres (Kensington) no ano de 1874. De fato, um dos maiores gênios destes últimos dois séculos de escritores, ao lado de mestres da literatura como T. S. Eliot, C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien.

Santo Tomás de Aquino disse certa vez que Deus é infinitamente perfeito pois também é incomensuravelmente simples: a Unidade, a falta absoluta de tudo o que possa sequer beirar a menor complicação estão tão afastados de Seu ser quanto um círculo está de um quadrado. Pois bem, em relação a Chesterton pode-se trilhar o caminho inverso: sua simplicidade argumentativa é algo que está absorvido de tal modo em seu estilo que ele quase alcança a perfeição, se isto é possível. Ortodoxia, assim como “Heretics”, “The Everlasting Man” e toda sua vasta obra estão permeados desses insights de um louco bom-senso, que deixa qualquer um desconcertado e incapaz de contra argumentar. Os silogismos de seus raciocínios não são apenas verdadeiros: são de uma verdade cândida, algo como uma mistura da inocência infantil com a inconveniência da realidade iconoclasta descrita por Lewis em “Dor” (A Grief Observed). Em suma: é o “tapa na cara” que a mãe desfere no filho, que chora não tanto porque o golpe arda sua pele, mas por ter de sujeitar-se à autoridade materna irrefutável.

A caminhada pela qual Chesterton nos conduz à verdade é ao mesmo tempo alegre e dramática, pois a sua alegria é diretamente proporcional ao espanto que causa em seus leitores e à ruína a que leva todos os sofistas – um dos muitos paradoxos do livro que são, por assim dizer, o playground do autor por excelência.

Qualquer pessoa que se interesse por Ortodoxia certamente ouvirá de outros que esta é a história do início da conversão de Chesterton ao Cristianismo, mas isto é um erro. Chesterton não se converteu. Chesterton apenas o olhou de frente e, para sua surpresa, viu a si mesmo como em um espelho. Ortodoxia é apenas o conto deste “olhar de frente”.

O verdadeiro equívoco, no entanto, reside em pensar que a obra é uma espécie Confissões de Santo Agostinho. Fosse apenas um tipo de autobiografia, o livro perderia muito de sua força. “Orthodoxy”, ao contrário, é como uma caminhada, um passeio em que somos levados pela mão até o ponto final. É mais que um relato: é uma obra de filosofia que mistura a maiêutica platônica com a racionalidade “pés no chão” de Aristóteles e Santo Tomás, mas escrita com a peculiaridade dos paradoxos chestertonianos. Note-se que os diálogos com o leitor não são impressos explicitamente, mas é como se ele nos estivesse dizendo a todo momento: “Não é mesmo que é assim? Isto não lhe parece tão óbvio quanto o mar, o céu e a lua?”. Foi esta combinação explosiva de tudo o que há de melhor na filosofia que deu origem a um dos homens mais sensatos do século XIX, autor de sentenças do tipo “A tradição é a democracia dos mortos”, “O louco é o homem que perdeu tudo, menos a razão”, entre outras. Chesterton, ao escrever sobre sua história, acabou por escrever a de todos os convertidos de dois mil anos de Cristianismo.

Este fascínio pelos paradoxos atinge seu auge no capítulo V do livro, intitulado de “Os paradoxos do Cristianismo”, o qual foi editado na forma de um livreto pela editora Quadrante, em São Paulo. Aqui a sua ousadia fica plasmada de tal maneira que qualquer tentativa de reproduzi-la seria em vão e imperfeita. Limito-me a dizer que, em resumo, o que Chesterton nos transmite é, possivelmente, uma das melhores apologias modernas ao Cristianismo já feitas, e nem o próprio Lewis, talvez, teria capacidade para isto.

Enfim, Ortodoxia é o livro que indico a todos aqueles que querem expurgar os fantasmas da má filosofia de nossos tempos.