sábado, abril 01, 2006

Lição de Modelagem

A Affonso Arinos Filho

Old Library, All Souls,
Advento de oitenta,
oitenta e um; alguém
passa e me cumprimenta,
já não recordo bem
se deixa a sala ou entra:
estou pasmo entre o Nada
e o Espírito, o Nôus...
Já quase de madrugada,
lendo Santo Irineu
sinto-me estupefato!
Confronta-me um retrato
da humana imperfeição
tão terno e tão exato
que corta o coração,
pelo menos o meu:
músculo de um ofício
de doidos, o impropício
arremedo de Orfeu,
outra vez desconfio
da maneira tranqüila
com que balança, oscila
para-lá-para-cá,
paráfrase do fio-
de prumo- no vazio
“ entre o orgulho, a argamassa
e o sonho do edifício”
diz-nos Santo Irineu.
E diz mais! Diz que a graça,
essa isca do Cristo,
depende do exercício
de uma certa omissão
por parte da criatura,
que é preciso omitir-se
com mais desenvoltura...
Agora escutem isto:
como se não bastasse,
com uma tal novidade,
julgo entrever a face
do santo lá na altura
a vigiar-me e rir-se
com justa hilariedade
dessa alucinação!
Redebruço-me, sério,
sobre o velho volume
em tinta de Nankim,
com dobras de marfim
numa capa rugosa,
aspiro-lhe o perfume
de tempo, de mistério,
e recomeço a ler.
Admiro-lhe a prosa,
mas que me diz? Que fé,
caridade, esperança,
e o que ante o precipício
sustenha a alma de pé,
dependeriam até
de algo ainda mais difícil
de obter e manter...
- E isso agora, o que é?
desafio-o em voz alta,
e o santo não se priva
de chamar à alma “a altiva
e pobre soberana...”
Cheio de cortesia
e paciência, diz
que a coitada se engana,
que o que mais lhe faz falta
é uma desconfiança,
que a criatura é infeliz
porque não desconfia!

II

Sim, mas naturalmente
do erro, da heresia,
de que esta vida é triste
porque a carne é doente,
digo-lhe (ou penso) eu;
e aí Santo Irineu
ri-se outra vez e insiste
que não é isso, “ é quase...”
Já na próxima frase
insinua a noção
de que, afora o poltrão,
só o tolo resiste
a uma outra solução
bem mais simples: saber
viver, morrer um dia,
enfim dependeria
apenas de aceitar
de todo o coração
cada fraqueza humana
(como uma elocução
do drama da razão,
digo-me eu, da arcana,
doce e cotidiana
agonia da luz...).
Há o pânico da Cruz
que nos pesa no dorso
e não poupa ninguém,
é claro, mas também
há uma ideologia
que glorifica o esforço,
há um terror de errar,
especialmente o medo
de não acordar cedo!
Com a mais fina ironia
e toques de poesia,
aquela pena aos poucos
vai bordando entre os loucos
arroubos da criatura
uma noção mais leve,
mais doce, da aventura,
da alma, esse caroço
enfurnado no poço
do orgulho, entre as loucuras
da mente... O santo escreve
seu agudo compêndio
para apagar o incêndio
da heresia, mas ri-se
da suprema tolice
do ser, dessa premura
em aperfeiçoar,
não a alma: “ a carcaça
que aloja essa criança”
( diz ele) cujo lar
ela põe-se a arrumar
quase sempre demais,
até que o destrambelha
e lhe cai outra telha
na cabecinha oca;
que a alma durma de touca
pois muita ascese cansa,
diz e rediz o santo;
mais vale por enquanto
deixar a carne em paz,
não tentar encaixar
cada coisa em seu canto,
mas calmo, quieto, mudo,
pôr-se a desconfiar
de si mesmo e de tudo.

III

Desconfiar do vício
de viver como o ateu,
que ainda não entendeu
que a vida não é a soma
ou a multiplicação
do esforço pelo ato;
o ato de quem toma
vitaminas diárias
para fortalecer
pela musculação
as pobres alimárias
do arcabouço do ser...
Que não é nada disso
o bom homem me disse
numa sala vazia,
numa biblioteca
cheia de velhos lenhos
e belos pergaminhos:
disse-me que o caminho
de quem resiste aos demos,
mas assim mesmo peca
por conta dos extremos
em que a alma balança
e vai que nem peteca
no ar de não em não ;
que a melhor solução
para quem viva assim
é largar dos disfarces,
cair fora da dança
antes que chegue ao fim,
e enfim resignar-se
(quem diria!) a pecar
antes por omissão!
Omitir os enganos
do culto da razão,
que quer a perfeição
como carpintaria;
omitir-se de amar,
como um peso nos ombros,
as solenes vitórias
do asceticismo brutal
sobre os pobres escombros
da carne natural;
omitir-se das glórias
de alcançar, que não passam,
por isso, de vanglórias
entre a página breve
e a mão de quem a escreve
entre os vermes e as traças.
Ir omitindo tudo,
ir omitindo tanto,
o lamento, o acalento,
a elegia e o louvor,
que, omissa até o absurdo,
a alma torna-se leve
viração no arcabouço
do corpo, dessa argila
que miniatura abismos
no desenho dos ossos
e dos nervos, grafismos
de bom desenhador...

IV

Quanto à soma intranqüila
de tudo o que sobrar
do que não conseguimos aperfeiçoar
(não por falta de estímulo,
mas por desconfiar
da perene ambição
de sermos nós os nossos
melhores arquitetos),
tudo aquilo não passa
de indiferença à graça,
na pompa e na soberba
dos sonhos do intelecto
que se presume autônomo
e, agindo como tal, acaba por supor
em si mesmo o fiscal
do seu próprio labor,
da sua inania verba,
do seu louco metrônomo,
da sua fruta acerba,
ou seca como o erro
do orgulho no desterro
de uma biblioteca.
Em sua apologética,
seu humilde serviço
ao nosso entendimento,
o santo diz ( e como!)
que o espírito enfermiço
não tem desconfiômetro,
pois tudo, tudo isso
cabe num só momento;
que existe outra maneira
de conceber o fruto
do sonho que minuto
a minuto a alma tece;
que basta não pedir
nem de nós nem da mão
que nos vai esculpindo
segundo por segundo,
mais que a resignação
e o acaso do projeto,
geométrico e lindo,
mas cego, do intelecto
que pensa que conhece
sempre de antemão
resultado e intenção.
Basta não resistir
e deixar-se esculpir,
amolecendo os ângulos
e trocando os retângulos
da vontade, sincera
mas quase sempre errada,
pela entrega encantada,
serena, da matéria
à alma luzidia
e ao gesto do Escultor ,
ambos puro mistério.

V

Inverno ou não Inverno,
a luz das madrugadas
em Oxford é mais fria
do que os gelos eternos
e aquela aquele dia
era das mais geladas;
inclinei-me a cadeira
um pouco para trás,
contemplei os vitrais
que a deixavam passar,
depois a cumeeira,
e, como disse antes,
vi (ou sonhei que via)
Santo Irineu jogar
lá de cima os brilhantes
de uma luz que caía
vívida como a lava
sobre o último breu
de uma sala vazia.
Voltara a última página
de Adversus Hereses
e, já que delirava,
imaginei o bom,
o sutil Irineu
feito bispo em Lyon,
pregando aquela tese
ante uma diocese
repleta de pagãos.
Revi-lhe quase as mãos
afinando o instrumento
como a apurar-lhe o tom,
e pensei que, a um momento
de desfalecimento,
por conta de um cansaço
em tudo igual ao meu,
um dia aquele homem
rodeado de loucos
havia com certeza
abandonado a mesa
,sacudindo os braços
pesados de saber,
quase que sem querer
esbarrara nos ocos,
nos vazios do ser;
vi-o diante de mim
como lia o seu nome
naquele pergaminho
e, olhando para os lados,
disse-me bem baixinho:
- “É uma bênção que a voz,
tão cheia de cuidados
de um venerável monge,
venha-nos de tão longe
consolar-nos a nós;
é doce ouvi-lo assim,
irônico, cansado,
metamorfoseado
em livro com desenhos
e capa de marfim,
mas tão pouco mudado
quase estes velhos lenhos
que ainda são como a árvore...”

VI

Pelo intenso fulgor
com que a luz se estendia
sobre as vigas e mármores,
suspeitei do outro lado
um dia ensolarado,
uma ocorrência rara
lá por aquelas bandas;
pensei ir à varanda
certificar-me, quis
erguer-me e não podia:
no brilho, no verniz
dos velhos assoalhos
a luz daquele instante
fazia como o orvalho,
cada gotinha clara
imitando um diamante
caía saltitante,
corria um tanto a esmo
e logo recobria
de uma tapeçaria
de ouro vivo até mesmo
o mais puro, o melhor
mármore de Carrara.
Bem um quarto de hora
olhei aquela sala,
o que lhe acontecia;
mesa, poltrona, estante,
eu sabia de cor
forma, textura e cor
de tudo ao meu redor, e ainda assim agora
vivia uma das cenas
mais belas deste mundo:
olhava lá do fundo
toda a extensão da sala,
no entanto via apenas
uma espécie de opala
salpicar-se de prata,
de ouro branco, de amor...
- “A aurora é como a Lei
( pensei um tanto à toa),
frágil como a garoa,
é ao mesmo tempo o manto
e a coroa do Rei...”
Quando me levantei
e fui repor o santo
na posição exata
em que o havia encontrado,
deti-me junto à estante
e, a ponto de ir-me embora,
fiz o Sinal da Cruz
louvando aquela luz,
o fogo delicado
da mais suave ancila
entre a variedade
das que da eternidade
obram pelo Senhor.
E das dobras da mente
às espirais do umbigo
alguém falou comigo:
- " A graça é como a aurora,
a cada dia invade
este lugar antigo
silenciosamente,
não como quem melhora
uma sala tranqüila,
como quem modifica
a grave majestade
de uma biblioteca
tornando-a ainda maior.
A alma, por pior
que se esforce, só peca
quando se petrifica...”


O mundo como Idéia --- Bruno Tolentino

2 comentários:

Anônimo disse...

Meu, isso foi complexo!!! Meus neurônios tão evaporando...

Irineu Tolentino disse...

Gostei!