terça-feira, março 14, 2006

O Homem no Espelho

“Todos aqueles que têm tido a infelicidade de lidar com criaturas completamente doidas ou que estão no estágio inicial da doença mental sabem que uma das suas características mais sinistras é a espantosa clareza nos pormenores: as coisas ligam-se umas às outras em um plano mais intrincado que um labirinto. Se você discutir com um doido, muito provavelmente levará a pior, pois a mente do alienado, em muitos sentidos, move-se mais rapidamente porque não se detém em coisas que preocupam apenas quem tem bom raciocínio. O louco não se preocupa com o que diz respeito ao temperamento, à caridade ou à certeza cega da experiência. A perda de certas afecções sãs tornou-o mais lógico. A maneira como se encara, vulgarmente, a loucura é errônea: o louco não é o homem que perdeu a razão, mas o homem que perdeu tudo, menos a razão.”

Falar de autores e livros é sempre um exercício mais ou menos ingrato. A relação escritor-leitor fica invariavelmente restrita a um início onde se apresenta o nome do cidadão sobre o qual se irá versar, em que lugar nasceu, se teve mulher, filhos, se fez algo de importante além escrever um livro, etc. Tudo isso é por certo enfadonho e, se pudesse, no caso deste texto simplesmente começaria por dizer que Chesterton é Chesterton, e o resto é o resto.

Acredito que há uma classificação pacífica segundo a qual todas as obras artísticas encontram-se divididas em duas espécies: as que serão lembradas até o fim dos séculos e as que serão deixadas no lixo do esquecimento. Ortodoxia é uma dessas criações literárias que veio para ficar. Uma verdadeira elegia ao bom gosto, cujo autor chama-se Gilbert Keith Chesterton, nascido em um pequeno distrito central de Londres (Kensington) no ano de 1874. De fato, um dos maiores gênios destes últimos dois séculos de escritores, ao lado de mestres da literatura como T. S. Eliot, C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien.

Santo Tomás de Aquino disse certa vez que Deus é infinitamente perfeito pois também é incomensuravelmente simples: a Unidade, a falta absoluta de tudo o que possa sequer beirar a menor complicação estão tão afastados de Seu ser quanto um círculo está de um quadrado. Pois bem, em relação a Chesterton pode-se trilhar o caminho inverso: sua simplicidade argumentativa é algo que está absorvido de tal modo em seu estilo que ele quase alcança a perfeição, se isto é possível. Ortodoxia, assim como “Heretics”, “The Everlasting Man” e toda sua vasta obra estão permeados desses insights de um louco bom-senso, que deixa qualquer um desconcertado e incapaz de contra argumentar. Os silogismos de seus raciocínios não são apenas verdadeiros: são de uma verdade cândida, algo como uma mistura da inocência infantil com a inconveniência da realidade iconoclasta descrita por Lewis em “Dor” (A Grief Observed). Em suma: é o “tapa na cara” que a mãe desfere no filho, que chora não tanto porque o golpe arda sua pele, mas por ter de sujeitar-se à autoridade materna irrefutável.

A caminhada pela qual Chesterton nos conduz à verdade é ao mesmo tempo alegre e dramática, pois a sua alegria é diretamente proporcional ao espanto que causa em seus leitores e à ruína a que leva todos os sofistas – um dos muitos paradoxos do livro que são, por assim dizer, o playground do autor por excelência.

Qualquer pessoa que se interesse por Ortodoxia certamente ouvirá de outros que esta é a história do início da conversão de Chesterton ao Cristianismo, mas isto é um erro. Chesterton não se converteu. Chesterton apenas o olhou de frente e, para sua surpresa, viu a si mesmo como em um espelho. Ortodoxia é apenas o conto deste “olhar de frente”.

O verdadeiro equívoco, no entanto, reside em pensar que a obra é uma espécie Confissões de Santo Agostinho. Fosse apenas um tipo de autobiografia, o livro perderia muito de sua força. “Orthodoxy”, ao contrário, é como uma caminhada, um passeio em que somos levados pela mão até o ponto final. É mais que um relato: é uma obra de filosofia que mistura a maiêutica platônica com a racionalidade “pés no chão” de Aristóteles e Santo Tomás, mas escrita com a peculiaridade dos paradoxos chestertonianos. Note-se que os diálogos com o leitor não são impressos explicitamente, mas é como se ele nos estivesse dizendo a todo momento: “Não é mesmo que é assim? Isto não lhe parece tão óbvio quanto o mar, o céu e a lua?”. Foi esta combinação explosiva de tudo o que há de melhor na filosofia que deu origem a um dos homens mais sensatos do século XIX, autor de sentenças do tipo “A tradição é a democracia dos mortos”, “O louco é o homem que perdeu tudo, menos a razão”, entre outras. Chesterton, ao escrever sobre sua história, acabou por escrever a de todos os convertidos de dois mil anos de Cristianismo.

Este fascínio pelos paradoxos atinge seu auge no capítulo V do livro, intitulado de “Os paradoxos do Cristianismo”, o qual foi editado na forma de um livreto pela editora Quadrante, em São Paulo. Aqui a sua ousadia fica plasmada de tal maneira que qualquer tentativa de reproduzi-la seria em vão e imperfeita. Limito-me a dizer que, em resumo, o que Chesterton nos transmite é, possivelmente, uma das melhores apologias modernas ao Cristianismo já feitas, e nem o próprio Lewis, talvez, teria capacidade para isto.

Enfim, Ortodoxia é o livro que indico a todos aqueles que querem expurgar os fantasmas da má filosofia de nossos tempos.

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