quinta-feira, março 16, 2006

Cinzas da Veleidade

"Para que vendo, não vejam; e ouvindo, não ouçam."

Rômulo Tenório caminhava havia alguns minutos, o arco da vista dividido entre as pedras do mosaico português e as pontas de seus sapatos. O ritmo de seus passos harmonizava com os de seu próprio pulso, e, como o sentimento que àquele instante o dominava era de uma estranha e intensa indiferença – algo como se houvesse arrancado sua alma e alocado-a em todas as outras coisas exteriores – seu andar era leve, quase um vagar sem destino.

Era a avenida Eduardo Ponz, que marcava o principal sulco de asfalto no meio daquele município. Rômulo o amava, e com ele tudo o mais que, como depois veio a perceber, enquadra-se na lista de palavras com as quais se chega a dizer que uma cidade não é apenas uma cidade, mas uma cidade grande. Sempre acreditara no poder que tais características exercem sobre a mente de um indivíduo, e ele mesmo era o milagre ambulante que confirmava esta fé. Tinha o dedo na chaga, pode-se afirmar. Agora como sempre, aquele era o momento em que esquecia de seu próprio nome, em que parava de respirar para deixar-se invadir pela multidão nas calçadas, tornando-se um minúsculo ponto de grafite no meio de toda a terrível máquina cósmica. Dobrava o seu ego, se é que um dia alguém entenderá como isto é importante na vida de um homem.

Uma pedra maldita fê-lo voltar a si mesmo. Um parco gomo de concreto - e um rosto também. Ao receber o impacto dolorido, levantara os olhos ao nível das cabeças que por ele passavam, e pousara-os na face circunspecta de um jovem - um relance fugidio, certamente, e que bastou, contudo, para novo contágio de introspecção. O resto foi por conta da imaginação, esta perene fabricante de sinapses tresloucadas: a dor lembrou-lhe a Dor - a Dor, a angústia.

O rapaz, notadamente bem alinhado, trouxe-lhe à memória a imagem daquele estudante das leis, com quem cursara a faculdade havia nove anos. Assíduo freqüentador de boates, discípulo intransigente de Baco, embaixador de todas as causas universitárias - era de porte físico pujante, inversamente proporcional ao seu glossário, um tanto diminuto. A trivialidade, para ele, era tão natural como seu fígado: existia, somente, como se não devesse ser de outro modo. Nada lhe restava, apenas a meia-virtude de receptar o ambiente, de traduzir cada inflexão de voz e cada contração da face em sinais evidentes do pensamento alheio, para não maculá-lo com seus próprios defeitos. As sobras eram cinzas da veleidade, aguardando o derradeiro sopro para completar o aniquilamento da potência.

Tais propriedades causavam asco em Rômulo. A percepção, pela obra genérica, nunca fora seu maior dote. E, todavia, o menor contato com o colega bastava para produzir-lhe a sensação de encontrar-se perante um homem encardido, um espírito frouxo – a pedra de toque dos que gastaram o olhar na contínua inspeção de todas as coisas, incautos, antes e depois, das conseqüências. Estas não são tristes; ao contrário, ouve-se risadas. Mas risadas que saem escarradas do peito, revelando a insurreição da própria consciência, tantas vezes afogada na consecução do ato, e que agora se vinga, escarnecedora, do infrator.

Um dia, porém, Rômulo o alertara. “Neste mundo, há efeitos de certas ações que nem mesmo a redenção pode apagar. O inocente assim perdura apenas até o momento em que responde a outros chamados; após, a chaga aberta e supurada acaso fecha-se - mas a marca continua, e a realidade segue a própria sina, imitigável. O inferno, portanto, é a inequívoca certeza dos fatos consumados, a que se soma a dúvida sobre a atual constituição do espírito, quiçá acerca da futura. O tormento se inicia, assim, já nesta vida - ela mesma, o pêndulo que vacila entre o desejo e a verdade.”

Rômulo estacou. Ao lembrar-se do sorriso cético com que o companheiro lhe respondera, atingiu-lhe o anseio, não pequeno, de gritar aos quatro ventos todos os impropérios que aprendera até então. Conteve-se, no entanto, raciocinando na imutabilidade inexpugnável de certas fortalezas. “O sol, enfim, há de ser para sempre o mesmo carro de Apolo” - e, abrindo bem os olhos, esperou até que a loja da esquina viesse em seu socorro com um banho de materialidade.

Mas as sombras já se alargavam, e a avenida chegara ao fim, o que significava estar na hora de regressar a seu apartamento, e ele, contrariado pela fugacidade do passeio, virou-se, limpou os óculos na camisa, e palmilhou novamente a calçada, absorto nos dizeres do poeta: “Poema nenhum, nunca mais, /Será um acontecimento: /Escrevemos cada vez mais /Para um mundo cada vez menos, /Para esse público dos ermos /Composto apenas de nós mesmos /Uns joões batistas a pregar /Para as dobras de suas túnicas /Seu deserto particular, /Ou cães latindo, noite e dia, /Dentro de uma casa vazia.”[1]

[1] “Casa Vazia”, Alberto da Cunha Melo

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